RIO — O plantão de 24 horas na Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) do Complexo do Alemão foi pesado. Funcionária do local desde 2013, a socorrista X passou um longo tempo medicando um homem baleado durante um tiroteio entre traficantes e PMs. Saiu do trabalho disposta a relaxar, e, para isso, vestiu um uniforme camuflado, calçou um par de coturnos e colocou um capacete e uma máscara. Uma hora depois de encerrar o expediente, ela estava pulando muros, rastejando num lamaçal e atirando em um grupo de rapazes. Usava uma réplica de fuzil AK-47 que dispara projéteis não letais por meio de ar comprimido. Uma diversão que, segundo associações esportivas, é compartilhada por cerca de dez mil pessoas na Região Metropolitana do Rio.
O grande número de praticantes de airsoft virou uma preocupação para autoridades. E essa dor de cabeça é explicada por uma estatística do Instituto de Segurança Pública (ISP): nos últimos dois anos, 1.508 simulacros de fuzis e pistolas foram apreendidos por policiais, boa parte ao fim de ações criminosas. Com o objetivo de regulamentar o uso esportivo de réplicas de armas, a Assembleia Legislativa (Alerj) avalia um projeto de lei da deputada Martha Rocha (PDT) que estabelece regras para a compra, o transporte e o licenciamento desses equipamentos. O texto, aprovado em primeira discussão, deverá voltar ao plenário na próxima semana.
— O airsoft é uma maneira de extravasar a tensão, uma válvula de escape. Tomara que não atrapalhem uma forma de lazer que ganha cada vez mais adeptos — afirma X., acrescentando que os exercícios militares simulados durante as partidas “ajudam na formação do caráter”.
O projeto de Martha Rocha — que, além de deputada, é delegada da Polícia Civil — não está relacionado a qualquer tipo de proibição da prática do airsoft no estado, mas pode acabar com a facilidade para a compra das armas de ar comprimido e de munição (geralmente, esferas de plástico com seis milímetros de diâmetro). Cabe ao Exército fiscalizar esse comércio, mas, em várias lojas, principalmente no Centro, uma réplica de pistola ou fuzil para uso esportivo é vendida sem a apresentação de um certificado de registro militar, o que contraria o Decreto Federal 3.665, de 20 de novembro de 2000.
— Se a proposta for aprovada pela Alerj e sancionada pelo governo estadual, será feito um cadastro dos praticantes de airsoft no Rio. O atleta terá de pagar anualmente uma guia e registrar seu equipamento junto à Polícia Civil para poder transportá-lo. A ideia é que ele mostre um documento que comprove a propriedade da arma em uma eventual abordagem — explicou a deputada.
Em fevereiro de 2010, o Exército baixou uma norma com a qual determinou que os equipamentos de airsoft tenham a extremidade do cano pintada de laranja ou vermelho vivo, para diferenciá-los das armas de fogo. Segundo policiais, o bico de muitas das réplicas apreendidas desde 2015 foi coberto com tinta preta para utilização em assaltos. Martha Rocha reforça a necessidade de adequação à exigência militar e lembra que casos de infração são passíveis de prisão.
SUFOCO EM BLITZ DA PM
Um dos problemas que mais preocupam os praticantes de airsoft no Rio é justamente o momento de transportar a arma para os locais das partidas. Um atleta contou que, no início deste ano, quando ia para uma batalha num parque abandonado da Zona Oeste, passou sufoco ao ser parado por policiais militares.
— Minhas armas tinham notas fiscais e estavam numa valise dentro do porta-malas do meu carro. Ou seja, eu não ostentava o material. Mesmo assim, um dos PMs cismou que uma delas era verdadeira. Resultado: fui parar numa delegacia. A minha sorte é que um inspetor da Polícia Civil viu que não havia nada de ilegal. Apesar disso, o PM perguntou se uma das minhas pistolas, que se assemelhava a uma Glock, poderia ser adaptada e virar uma arma letal. Há muito desconhecimento sobre o assunto — reclamou o praticante de airsoft, que, assim como X., pediu para não ser identificado por medo de represálias.
Para ele, o projeto que tramita na Alerj é uma boa iniciativa, apesar da burocracia para a emissão de um documento e o pagamento de uma taxa anual. Deputados querem que o dinheiro vá para o fundo da Polícia Civil.
— O projeto dará garantias para nós, adeptos do airsoft. Mas também é importante treinar melhor os policiais para as abordagens, o que evitaria apreensões de equipamentos, algo que sempre acontece. Quando me conduziram à delegacia, fiquei pensando que deixaria de praticar o esporte por um bom tempo se minhas armas fossem encaminhadas para a perícia — disse o atleta.
Integrante da Comissão de Direito Desportivo da seção Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-TJ), Guilherme Pereira, também praticante de airsoft, ajudou na redação do projeto de lei. Ele ressaltou que as partidas precisam ser respeitadas por todos e encaradas como atividades recreativas.
— O airsoft foi criado como uma prática saudável, de entretenimento. Tornou-se uma possibilidade real para quem aprecia atividades militares e quer fazer um esporte sem vinculação política, paramilitar ou criminosa. Há eventos inspirados nas histórias das grandes guerras. Apesar de o direito à prática de esportes ser garantido pela Constituição Federal, não existe uma lei ordinária que o regulamente. Isso faz com que alguns atletas tenham suas armas apreendidas e sejam confundidos com marginais — afirmou Pereira.
Na Câmara dos Deputados, também tramita um projeto de lei, de autoria de Alexandre Leite (DEM-SP), para regulamentar a venda e o transporte de equipamentos de airsoft em território nacional.
— No entanto, esse projeto está parado. Nossa esperança é que o do Rio seja aprovado em breve. Não dá para o poder público ignorar a importância do tema — frisou o representante da OAB-RJ.
missões inspiradas em filmes de guerra
Um dos organizadores de grandes batalhas de airsoft no Rio, Silas Duarte, da Jpa Airsoft, está na torcida pela aprovação do projeto de lei. Ele apostou na popularização do esporte e comprou dois campos em Jacarepaguá, cada um com cerca de 2 mil metros quadrados. O ingresso e o aluguel de equipamentos para uma partida custam R$ 80.
— Vem gente de todos os cantos, inclusive mulheres e adolescentes. Cada batalha reúne cerca de 50 participantes. Simulamos guerras e criamos operações. Reproduzimos cenas de “O resgate do soldado Ryan” e de “Falcão negro em perigo”. Quem vem se diverte muito — garantiu Duarte.
A paixão pelo esporte não sai barato. Ter equipamentos de segurança e usar as próprias armas exigem gastos que partem de R$ 300 e podem chegar a R$ 20 mil.
— Na verdade, não há um limite para quem gosta de airsoft. Tem gente que quer ter o uniforme de um soldado americano, impermeável e à prova de fogo. A roupa não pode ser frágil, e óculos são indispensáveis. Há uniformes para operações na selva que têm até repelente. Alguns coturnos reduzem o impacto no solo, e isso é importante, basta pensar que uma pessoa chega a carregar 20 quilos de equipamentos durante uma batalha — contou Delleam Santos, responsável por um blog sobre airsoft.
Na opinião dele, o projeto que está tramitando na Alerj não vai ajudar muito os praticantes de airsoft se virar lei:
— Regras já existem. O Exército criou normas. O problema é que cada região adota procedimentos diferentes. Há lugares em que o praticante de airsoft leva até um ano para receber uma autorização de uso do equipamento. É muita burocracia. A guia de pagamento da taxa será apenas mais um papel, mais um gasto.
FONTE:https://extra.globo.com/noticias/rio/alerj-avalia-projeto-de-lei-que-exige-cadastro-de-praticantes-de-airsoft-na-policia-civil-21449559.html?versao=amp
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